I. Portugal como subscritor de instrumentos internacionais neste domínio –designadamente da Convenção de Lanzarote -, está obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com menores, abusando o agente de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre a criança, incluindo o ambiente familiar, ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.
II. O bem jurídico protegido com a incriminação de abuso sexual de menor dependente é o livre desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual, ligado à ideia de que a autodeterminação sexual de crianças, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra carecida de uma proteção especial, não tanto pela falta de madurez para anuir como sobretudo pela viciação da liberdade de decisão ou de resistência derivada da relação de dependência para com o agente.
III. A/o mãe/pai que estabelece uma relação de facto com outra pessoa levando filhas/filhos próprias/os para o seio do agregado da sua “família afetiva”, confia-as/os para educação e/ou também para assistência ao companheiro, esperando e podendo exigir-lhe corresponsabilidade pela educação, formação, proteção, assistência e encargos.
IV. Por sua vez, para a criança filha de uma das pessoas da união de facto, a/o companheira/o desta/e é, no dia a dia, a/o mãe/pai de facto. De tal modo que muitas vezes a criança interioriza e assume o tratamento de mãe/pai à/ao companheira/o de facto da/o respetiva/o progenitor/a.
V. A doutrina – com escassa dissonância – e a jurisprudência deste Supremo Tribunal convergem em considerar que a relação de confiança para educação ou assistência inclui, ademais das situações decorrentes da lei, de decisão judicial ou administrativa ou de contrato, também aquelas que se estabelecem através de relações de facto. entre as quais se incluem as situações hodiernamente cada vez mais frequentes em que as crianças vivem no seio de uma “família afetiva”.
VI. Elemento nuclear da incriminação do abuso sexual de menor entre 14 e 18 anos de idade é a relação especial de dependência materializada na confiança para educação ou assistência.
VII. A coabitação, por si só, não é elemento constitutivo do crime de abuso sexual de menores dependentes.
VIII. É circunstância agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pela Lei n.º 103/2015, que transpôs para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/UE.
IX. Atualmente não há suporte normativo para continuar a entender que constitui um só crime a realização do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que protejam o mesmo bem jurídico eminentemente pessoal, executada por forma essencialmente homogénea.
X. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a recusar uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autodeterminação sexual, da categoria do «crime de trato sucessivo».
XI. Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração.
XII. O direito penal visa proteger os bens jurídicos que o legislador entender serem dignos desse amparo reforçado.
XIII. Os parâmetros concorrentes na determinante da medida judicial da pena – funcionando dentro da correspondente moldura penal –, são as exigência de proteção do bem jurídico violado (estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual a sanção deixará de cumprir esta função ), a medida da culpa posta na execução do facto (que traça a linha máxima para além da qual a pena se torna desproporcionada senão mesmo parcialmente arbitrária) e as particulares necessidades de ressocialização do agente (que, dentro daqueles duas balizas, deve fazer com que a pena concreta se encoste mais a uma ou à outra) –arts. 40º n.ºs 1 e 2 e 71º n.º 1 do Cód. Penal.
XIV. O montante da reparação ou compensação arbitrada às vitimas especialmente vulneráveis deve obter-se através da equidade.
XV. Quando a vítima é uma criança devem ter-se em atenção a idade, a maturidade, estado de saúde, os seus pontos de vista, as necessidades e as preocupações da/o menor, o tipo de atos sexuais nela praticados, a duração da vitimização, as consequências que possam ter resultado no seu equilíbrio psicológico ou na sua integração social.