i. A Cláusula Geral Anti-abuso (CGAA) prevista no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária visa, principalmente, desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações sem fundamento económico, artificialmente construídas com propósitos essenciais de elisão fiscal.
ii. Na versão do artigo 63.º do CPPT aplicável à data dos factos, a CGAA só podia ser aplicada depois de autorizada, em procedimento próprio enxertado no procedimento de informação e fiscalização, pelo dirigente máximo da administração fiscal ou pelo funcionário a quem aquele tivesse delegado essa competência, sendo o acto de autorização passível de impugnação contenciosa.
iii. Na falta ou improcedência de impugnação contenciosa de tal acto este firmava-se na ordem jurídica como caso resolvido ou decidido.
iv. A impugnação contenciosa do acto de autorização da CGAA, por vícios próprios deste acto, não impede a posterior impugnação dos vícios que respeitem à sua concreta aplicação, a ser efectivada em procedimento distinto e autónomo do procedimento de autorização e do procedimento de informação e fiscalização, isto é, no procedimento de liquidação.
v. As informações, pareceres e relatório exarados no procedimento de informação e fiscalização, onde se enxerta um procedimento de aplicação da CGAA, podem comportar três sentidos ou finalidades e ter aplicação em dois procedimentos distintos: no procedimento de autorização, (1) consubstanciam a fundamentação da proposta para autorização da aplicação da CGAA e (2) servem como fundamentação própria do acto autorizador, caso haja concordância do decisor com os mesmos; no procedimento de liquidação, (3) constituem a fundamentação própria, por remissão implícita, dos actos de liquidação.
vi. Assim, ainda que exista uma coincidência gramatical entre a fundamentação de cada um dos referidos actos e proposta, não se verifica uma coincidência jurídica, tendo cada acto a sua fundamentação própria, sendo por isso a fundamentação do acto autorizador da aplicação da CGAA juridicamente distinta da fundamentação dos actos de liquidação subsequentes, os quais são praticados em procedimento igualmente distinto do procedimento do acto autorizador e com destinatários diferentes: o destinatário directo do acto de autorização é a própria administração, enquanto os actos de liquidação têm por destinatário directo o sujeito passivo.
vii. Para efeitos do acto de autorização da CGAA, a enunciação dos elementos que demonstram a falta de substância económica do negócio depende de um juízo perfunctório e abstracto, que não se confunde com a prova dessa falta de substância económica.
viii. O acto autorizador não é lesivo nem definitivo no sentido de estabelecer a posição definitiva da Administração. No entanto, consolidado na ordem jurídica, os vícios próprios desse acto, mas só esses, não podem voltar a ser reapreciados ou ser objecto de posterior impugnação.
ix. A inimpugnabilidade de tais vícios não significa, porém, que os vícios de outros actos tributários praticados em procedimento distinto, concretamente no procedimento de liquidação, não possam ser arguidos e apreciados.
x. Assim, na impugnação da liquidação consequente às correcções efectuadas ao abrigo da CGAA o contribuinte não está impedido de suscitar a sua concreta ilegalidade, o que pode redundar na impugnação dos elementos concretamente considerados na aplicação da norma anti-abuso, ainda que estes, de forma indiciária, tenham sido conhecidos no despacho autorizador da mesma.
xi. Não existe relação de prejudicialidade entre o objecto de uma acção administrativa em que se impugna o acto que autoriza a aplicação da CGAA e o objecto da impugnação judicial das liquidações subsequentes. Tal relação de prejudicialidade só existirá, parcialmente, se o acto autorizador for novamente sindicado na impugnação judicial, como sucede no presente caso.
xii. O âmbito do caso julgado está objectivamente limitado pela relação silogística que se estabelece entre a decisão concreta e os factos que lhe servem de suporte e pela fundamentação que se correlaciona directamente com essa decisão.
xiii. Inexiste qualquer autoridade do caso julgado formado por acórdão proferido numa acção administrativa relativa à impugnação do acto de autorização da CGAA e a posterior impugnação judicial das liquidações subsequentes. Qualquer fundamentação do primeiro, referente à prova da falta da substância económica do negócio, é pura e simplesmente irrelevante para efeitos de caso julgado em impugnação judicial posterior, apenas relevando a parte da fundamentação relativa à justificação da aplicação futura da CGAA, tanto mais que as fundamentações do acto autorizador e das liquidações, podendo ser gramaticalmente coincidentes, juridicamente não constituem uma só e única fundamentação.
xiv. Estender a autoridade do caso julgado formado em acção administrativa de impugnação contenciosa do acto que autoriza a aplicação da CGAA ao processo de impugnação judicial das liquidações subsequentes, impedindo a concreta impugnação destas, viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, e constitui uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, visto que priva a contribuinte do direito à sindicância de um acto tributário, que a lei fundamental e normas de direito ordinário manifestamente lhe reconhecem.
xv. As anti-abuse judicial doctrines são produto da jurisprudência dos países da common law, mormente da jurisprudência norte-americana. Nestes países o ordenamento jurídico atribui aos precedentes judiciais a força de padrão normativo a ser usado em casos semelhantes, os quais, à semelhança dos antigos Assentos, constituem verdadeiros princípios jurídicos vinculativos para os tribunais inferiores.
xvi. Uma dessas doutrinas, a step transaction doctrine (denominada no Reino Unido como composite transaction doctrine), postula que uma série de transações concebidas e executadas como partes de um plano unitário, com o único ou principal propósito de alcançar um determinado resultado fiscal, serão vistas como um todo independentemente do efeito produzido ser a imposição ou a isenção de impostos.
xvii. Não é conforme à step transaction doctrine considerar a sua aplicação numa operação económica que se desenrola em várias etapas, relevando para esse efeito apenas a última etapa, com fundamento no alegado propósito elisivo da mesma, e irrelevando as etapas anteriores com fundamento na sua licitude e pertinência.
xviii. Em regra o regime jurídico das Sociedades Gestoras de Participações Sociais (SGPS) impede a este tipo de sociedade conceder créditos. Assim, face ao regime jurídico que lhe era aplicável, a recorrente não podia conceder directamente os empréstimos efectuados à maioria das sociedades que deles beneficiaram no caso sub judice. Não se verifica, assim, a premissa de que partir a AT para justificar a aplicação da CGAA.
xix. Em regra, as sociedades comerciais têm por finalidade o lucro, o que não sucede com as SGPS, que têm uma gestão essencialmente orientada para o lucro das sociedades que lhe estão subordinadas, embora o lucro não esteja completamente arredado dos propósitos da sua actividade.
xx. A quase totalidade dos juros recebidos pela sociedade mutuante, em função dos contratos de mútuo que celebrou, por imposição legal e contabilística converteram-se em lucro, dada a quase inexistência de custos de produção ou manutenção da referida sociedade.
xxi. Se não existir disposição contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, de sinal contrário, o lucro das sociedades comerciais destina-se, nos termos do artigo 294.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a ser distribuído, em primeira linha, pelos respectivos sócios.
xxii. O sócio adquire o direito ao lucro convertido em dividendo quando a deliberação social tomada nos termos do artigo 31.º do CSC determina a sua distribuição.
xxiii. O destino a dar ao lucro resultante dos empréstimos efectuados pela sociedade mutuante era irrelevante para efeitos fiscais, por força do regime fiscal que lhe era aplicável, por estar sedeada na Zona Franca da Madeira.
xxiv. É artificial e viola o princípio da boa-fé a conduta da administração fiscal que, para poder aplicar a CGAA, apenas atribui ao acto de distribuição de dividendos um propósito elisivo, irrelevando as etapas anteriores para o mesmo efeito.
xxv. Tal situação, bem como a convocação da step transaction doctrine visaram ultrapassar o obstáculo que se colocava à aplicação da CGAA, que o ordenamento jurídico nacional desconhecia à data em que a etapas iniciais da operação foram desenvolvidas.
xxvi. A análise objectiva e razoável da factualidade, numa perspectiva de aplicação dos testes prévios que a jurisprudência norte-americana utiliza como condição de aplicação da step transaction doctrine, o teste da interdependência (mutual interdependence test), o teste do resultado final (end result test) e o teste do compromisso obrigatório (the binding commitment test), não consentiam a aplicação da step transaction doctrine.
xxvii. Na jurisprudência norte-americana a aplicação da step transaction doctrine só se justifica se existir, como único ou principal propósito, a obtenção de uma vantagem fiscal.
xxviii. Na União Europeia é aceitável a conduta visando a obtenção de um regime fiscal mais favorável desde que o propósito fiscal não seja único ou determinante.
xxix. Os deveres legais gerais que impendem sobre os administradores e gerentes de sociedades permitem a adopção de estratégias de gestão com finalidade de obtenção de economias fiscais nas transacções económicas, desde que essas estratégias não visem exclusivamente a obtenção de vantagens fiscais.
xxx. A mera obtenção de uma vantagem fiscal, decorrente de um benefício fiscal, numa operação económica que não seja conduzida de forma artificiosa ou fraudulenta, não configura uma situação que mereça ser corrigida por meio da aplicação da CGAA.

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